sábado, 30 de janeiro de 2010

O CINEMA E SUA DUPLA ASSERÇÃO: ARTE E INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO




“Sr. Méliès, a nossa invenção não é para ser vendida. Pode ser explorada algum tempo como curiosidade científica, mas não tem nenhum interesse comercial.”
Antoine Lumière





Institucionalizou-se denominar o cinema como a sétima arte. À parte disso, no transcorrer da sua história, o que se percebeu foi uma forte caracterização do que se compreende como uma produção em escala industrial para um público consumidor de bens culturais. No entanto, analisando por outro viés, percebe-se que a obra cinematográfica é fruto da concepção e da elaboração de uma equipe de pessoas que se dedicam a transformar as intuições, as percepções, as sensações em seqüências de imagens concatenadas num enredo. Nessa perspectiva dual, faz-se pertinente perguntar: o cinema pode ser compreendido como uma forma de arte ou de indústria do entretenimento?

Antes de se pôr em discussão se o cinema é ou não uma arte, faz-se necessário discutir o que vem a ser uma obra de arte. Evidencia-se o caráter criador do artista, quando, graças à sua poésis, objetiva, através de meios materiais, a sua subjetividade. Seu talento mostra-se quando se “projeta para fora, fixando, assim, o seu ser fugidio e perecível ou a sua visão do mundo, do homem e das coisas.” (ROSENFELD, 2002, p. 202). O artista possui a capacidade de exprimir-se, de externar suas experiências pessoais e coletivas, de traduzir seus movimentos psíquicos e seu mundo subjetivo, através das obras, que são carregadas de sentido.

O artista não apenas objetiva de modo particularmente expressivo a vida de sua época e do seu povo, mas como essa vida é percebida e significada por ele, mesmo que se tratem de vivências coletivas.

Conforme atesta Rosenfeld (op. cit., p. 208), outra característica que se atribui à obra de arte é a da expressão, ou seja, toda obra de arte pretende expressar algo. Entretanto, considerando-se que o artista, enquanto ser humano, é um ser de vida gregária e é no grupo social que ele adquire os signos da sua expressão, não se pode deixar de lado o fato de que, num processo de interação social, “o artista se comunica com seus espectadores.” Ou dito de outra forma, toda expressão busca comunicar algo a alguém. Uma expressão que não se comunica deixa de ser expressão. Deste modo, o artista procura exprimir e comunicar, através do seu material específico, seja som, imagem, cor, forma, textura, ritmo, movimento, palavra, etc., de um modo singular “um fenômeno geral, uma idéia, uma emoção, uma estrutura de sentidos, uma atmosfera humana.” (id. ibid., p. 208).

“Através da manifestação sensorial e individual, a arte faz transparecer uma dimensão mais profunda, que é de ordem espiritual.” (ROSENFELD, op. cit., p. 208). O plano sensorial afeta os sentidos, abrindo a percepção para “camadas mais profundas de significados, emoções, e aspectos inefáveis da existência.” Essas esferas mais recônditas reveladas pela obra de arte comunicam, muitas vezes, aquilo que não se pode traduzir em conceitos, o indizível, as intuições.

Para Rosenfeld (op. cit., p. 208), a comunicação deste aspecto da realidade, que somente pode ser intuído, ocorre graças aos meios sensoriais de expressão. A obra de arte é dotada de um “campo de forças que faz com que o apreciador entre em sintonia com o que é expresso.” A este acontecimento, costuma-se designar como vivência ou experiência particular. Através de um fenômeno individual da realidade, a arte consegue fazer com que seu apreciador tenha a intuição de um fenômeno geral. “Na obra de arte, o individual e o universal, o geral e o específico, e espiritual e o sensorial se unem indissoluvelmente.” (ROSENFELD, op. cit., 208).


Somente na arte se unem ambos os pólos na vivência estética singular do apreciador que, ao mesmo tempo, participa e não participa, que se identifica intimamente com o fenômeno individual, sofrendo as impressões sensoriais e que, contudo, como apreciador e espectador, permanece suficientemente distante para poder compreender o sentido do que ocorre. [...] Decorre do exposto que a particularidade da arte é aquela síntese de duas esferas diversas: a esfera sensorial, fixada na matéria da pedra, do celulóide, da tela do pintor, das páginas do livro, na sucessão material dos sons; e a esfera espiritual das idéias gerais, que se revela através da esfera sensorial. [...] O segredo de toda obra de arte é a sua transparência que, num jogo intrincado de símbolos, deixa entrever um ser ideal, em última análise inexprimível, através da primeira camada puramente material de pedra, dos sons, da tela do pintor ou do celulóide do filme. (ROSENFELD, op. cit., p. 209-210).


Diante do exposto, faz-se aqui um novo questionamento: o cinema agrega as características de uma obra de arte? De acordo com Barbáchano (1979, p. 19), no que diz respeito ao critério da individualidade da poiésis cinematográfica, é evidente que “o filme não é obra de um só homem, mas de toda uma equipe de profissionais que trabalham coletivamente.” Mesmo partindo de um roteiro, que pode ser escrito por uma pessoa somente, ou do trabalho do diretor, nem este nem o roteirista, sozinhos, dão conta da realização do filme. Em geral, cabe ao diretor a transposição das suas intuições para a tela do cinema, através da coordenação da sua equipe, que, envolvendo cenógrafos, figurinistas, maquiadores, contra-regras, cinegrafistas, fotógrafos, engenheiros de luz e som, eletricistas, coreógrafos, atores, etc., trabalha de forma concatenada. Além disso, o diretor não consegue trabalhar de forma independente, ele precisa do produtor, que, junto às grandes empresas fornecedoras do capital necessário, consegue o financiamento para que a sua obra consiga uma concretização. Assim, pode-se afirmar, conforme Rosenfeld (op. cit., p. 203), que num filme, há uma “personalidade coletiva a se expressar.”

Aqui, faz-se mister considerar que os investidores e produtores não financiam o filme simplesmente por questões beneméritas, ou por considerar o cinema como uma genuína forma de expressão artística. As diretrizes norteadoras da sua ação, como não seria diferente num mundo capitalista, é a obtenção de lucros compensadores de seus altos investimentos. Estes, por sua vez, dependem do consumo do que é produzido. Aí entram em cena os distribuidores e os exibidores, formando uma rede de propagação do filme, enquanto produto a ser consumido por um maior número de espectadores. Está montado o esquema industrial que envolve o mercado cinematográfico.

Fica patente que o que se expressa numa obra cinematográfica não é somente uma “personalidade artística coletiva” (ROSENFELD, op. cit., p. 204), mas um cálculo estatístico dos lucros que os magnatas do cinema obterão, a partir da exibição massiva para milhões de consumidores. O filme, assim, constitui-se num produto a ser consumido, pois o capital investido visa a causar impressão sobre um número máximo de consumidores, não se configurando somente como a expressão de um número mínimo de artistas criadores.

Entretanto, como defende Rosenfeld (op. cit., p. 204), tal fato não exclui que diretores de personalidade marcante, coordenando sua equipe, possam imprimir seu espírito nas obras que produz, “devendo ser consideradas como obras de arte no rigoroso sentido da palavra. E, como meio de expressão peculiar e inconfundível, o filme, feito de luz, imagem e movimento, invade o terreno da arte.” (id. ibid., p. 34). Existem cineastas que se exprimem realmente através da obra fílmica, recriando, por meio de imagens, as suas vivências, concepções e sua maneira peculiar de sentir o mundo.

Considerando-se o fato de que as empresas financiadoras não têm, em geral, intenções estéticas, este aspecto se torna um fenômeno marginal. E é justamente a forma estética com a qual o filme expressa as intuições de quem o realizou que o tornam uma obra de arte. Segundo Turner (1997), as empresas não chegam, portanto, a se opor a uma moderada dose de elementos estéticos, mas estes aspectos são subordinados ao interesses do capital que financia tais obras, geralmente alheios à arte.


O filme deixou de ser produto de uma indústria isolada e passou a fazer parte de uma gama de artigos culturais produzidos por grandes conglomerados multinacionais, cujo principal interesse está, provavelmente, mais na eletrônica ou no petróleo do que na construção de imagens mágicas para a tela. (TURNER, op. cit., p. 15).


Para Chiarini (apud ROSENFELD, op. cit., p. 36), “a criação artística tem leis muito distintas das leis industriais; ao passo que a arte se traduz pela individualidade, personalidade e diferenciação, a indústria caracteriza-se pela uniformidade, estandardização, tipificação.” A razão artística tende a diferenciar um filme do outro; a industrial, ao contrário, tende a uniformizá-los.

Como aponta Barbáchano (op. cit., p.19), os alemães, por sua vez, tentam conciliar ambas as tendências a partir do conceito de traumfabrik, que, numa tradução corrente, equivaleria ao termo “fábrica de sonhos”, ou seja, nesta perspectiva, o cinema seria “a indústria de se produzir a arte do imaginário.”


[...] a indústria cinematográfica mudou. Outrora um pequeno negócio dirigido por empresários entusiastas, passou a se concentrar num oligopólio dirigido por estúdios de Hollywood, que também tiveram de vender sua parte para outros interesses – principalmente na área da comunicação e da eletrônica -, de modo que hoje o cinema é simplesmente um outro resultado da necessidade de diversificação dos grandes conglomerados. (TURNER, op. cit., p. 19).


Ainda conforme Turner (op. cit., p. 18-21), as empresas da indústria cinematográfica interferem não só na distribuição, comercialização e na exibição do filme, mas ao financiar o filme, interferem no processo como um todo, impondo os princípios que lhe parecem certos. Deste modo, não é difícil compararmos a produção cinematográfica com o que fora a produção artística em outras épocas, quando os chamados gênios da arte, seja na pintura, escultura, arquitetura, ou qualquer outra forma de expressão artística, se submetiam aos desmandos de quem os encomendava as obras, cerceando a sua liberdade de criação.


Em todas as épocas clássicas, o artista aceitou o compromisso entre a encomenda social e o sonho individual: sua obra representava a encruzilhada entre o seu caminho solitário e o caminho coletivo dos outros, tornando-se ponto de intersecção [...]. E a própria autonomia da arte consiste em aceitar a imposição da encomenda, impondo a ela, simultaneamente a sua magia. [...] Esta situação não exclui a possibilidade de criação de verdadeiras obras de arte. (ROSENFELD, op. cit., p. 39).


Como narra Barbáchano (op. cit., p. 19), há muitos anos, alguém perguntou a Alfred Hitchcock quando é que os cineastas escapariam às poderosas imposições comerciais que condicionam a feitura de uma película. “O famoso diretor respondeu que isto aconteceria somente no momento em que produzir um filme não custasse mais do que uma caneta esferográfica e uma folha de papel.”

Considerando o que já foi dito sobre o fato de o artista estar inserido num contexto social, pode-se afirmar que a sua expressão não pode estar restrita a si próprio. O artista que não utiliza a sua expressão para se comunicar, “deixa de ser artista e torna-se um alienado, à margem da sociedade.” (ROSENFELD, op. cit. p. 39). É da natureza da arte a realização de uma síntese de auto-expressão individual e de comunicação social.

No caso da indústria cinematográfica, principalmente a hollywoodiana, o que nos dificulta compreender o cinema como uma forma de arte é o fato de esta indústria ter se constituído, ao longo do tempo, num grande centro de produção de entretenimento. Este termo remete a passa-tempo ou algo de valor menor numa avaliação estética. Segundo defende Rosenfeld (op. cit., p. 42), “as nossas horas de lazer são essenciais para a nossa economia psíquica, uma vez que nos escravizamos em nossas relações de trabalho.” O cinema enquanto forma de entretenimento, estaria situado na esfera da negação do lazer. Contudo, ainda conforme Rosenfeld (ibid., p. 42), “entretenimento e arte de modo algum se excluem, pois, embora diferentes, eles partem do mesmo princípio: a fruição e o prazer.”

Evidentemente que a arte é muito mais do que entretenimento; ela é uma experiência espiritual de intensidade incomparável, enriquecimento da vida emocional, do intelecto e da sensibilidade. Mas também a arte, assim como o entretenimento, provoca o prazer. Não podemos apreciar as obras que não nos interessam e que não nos entretêm, porém os produtos que nos entretêm não chegam a ser obras de arte. O fato de o cinema constituir-se em entretenimento não exclui a possibilidade de ele ser também uma obra de arte.

De acordo com Morin (apud MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 89), a propósito do cinema, “a divisão do trabalho e a mediação tecnológica não são incompatíveis com a criação artística”. Além disso, mesmo sob certa padronização, não implica a total anulação da tensão criadora.

É notório, no transcorrer da história do cinema, que os grandes conglomerados cinematográficos subestimaram o poder de intelecção das massas, oferecendo filmes de fácil compreensão, mediante a construção de uma semiótica simplificada, de fácil decodificação e até mesmo banalizadora. Esse foi um dos principais fatores que fizeram com que o cinema de massas fosse bastante criticado. Por ter alcançado larga aceitação e aquiescência pelo público, esses filmes ditaram a tônica da produção. Entretanto, ainda existe uma parcela do público que busca uma forma de produção que supere este caráter de mero entretenimento que o cinema adquiriu. De acordo com Turner (op. cit., p. 16), não raro, “alguns filmes que podem ser considerados como obras de arte foram fracassos de bilheteria.” O gosto do público foi condicionado pelas grandes produções de fácil consumo.

Embora os exemplares do cinema-entretenimento sejam abundantes e de muito maior alcance, não se pode julgar a poésis cinematográfica apenas pelo seu valor de mero entretenimento, pois esta traz consigo a marca de quem a produz, mesmo que sob encomenda de interesses alheios à arte. Afirmar que é impossível a criação da arte cinematográfica, a despeito da grande estrutura industrial que envolve o cinema, seja durante a produção, a distribuição e a exibição, seria injusto e até mesmo pessimista. A arte cinematográfica se torna possível e se instaura apesar da luta contra inúmeras circunstâncias desfavoráveis. Raras obras de valor estético, educativo e informativo superam as expectativas de um cinema que se reduz a mero entretenimento. São elas que outorgam ao cinema a sua característica de sétima arte.



REFERÊNCIAS:

BARBÁCHANO, C. O cinema: arte e indústria. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Trad. R. Polito e S. Alcides. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.

ROSENFELD, A. Cinema: arte e indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002.

TURNER, G. Cinema como prática social. Trad. Mauro Silva. São Paulo: Summus, 1997.

Nenhum comentário: